Premiada performer é a convidada de fala pública que ocorre nesta sexta em Piracicaba
Divulgação |
Por Henrique Inglez de Souza
O projeto Documentário Vergonha, do Coletivo Bruto e da Cooperativa Paulista de Teatro, apresenta Fala Pública Performance na Rua: Experimentação Artística e Imaginação Política. O evento será nesta sexta-feira (29), às 20h, no Clube 13 de Maio, e contará com a convidada Eleonora Fabião. A premiada performer e professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) dividirá sua experiência em centros urbanos, falando sobre práticas e conceitos relacionados ao corpo performativo, à imaginação política e à estética do estranho. Entre os trabalhos que realizou está a elogiada intervenção No Meio da Noite Tinha Um Arco-Íris, No Meio do Arco-Íris Tem Uma Noite, realizada em Nova York, Estados Unidos (foto menor). Eleonora, que mora no Rio de Janeiro, conversou com o PiaparaCultural nesta quarta-feira (27).
Qual é o limite entre a força política e a arte em uma
performance corporal de rua?
Todo artista, conscientemente ou não, resiste a
determinadas forças e pactua com outras, e isso define modos estéticos, éticos
e políticos. Em outras palavras: fazer artístico e fazer político são
indissociáveis, mesmo que o tema do trabalho não seja obviamente político, pois
a arte trata, conjugadamente, de percepção e criação de mundo. Outro ponto
elementar mas que precisa ser enfatizado: o fazer da "política" não é tarefa
exclusiva de políticos profissionais, muito menos de politiqueiros oportunistas
que se dedicam ao mero business. São várias as maneiras de fazer a política e a
polis, e o artista é um desses agentes.
Muda alguma coisa nas performances quando realizadas
em períodos agitados, como o atual?
Felipe Ribeiro/Divulgação |
Estamos em crise e, como
sabemos, crise é oportunidade. Rearranjos estão em andamento, sentidos em
processo de revisão, reconfigurações sendo articuladas. Estamos todos
trabalhando muito, e estamos todos em "estado de performance". O fato é que
performar é criar crises pontuais, ou ainda, crises localizadas e agudas para
que mantenhamos sempre o nosso espírito crítico-propositivo em ação. À
performance caberá manter o movimento permanente em permanente movimento.
O "estranho" desperta mais incômodo ou interesse nas
pessoas?
Isso, não sei dizer. Dependerá de cada pessoa.
Dependerá, também, de cada trabalho e de seus modos de operação. O que posso
dizer é que me interessam modos poéticos, estratégias artísticas, práticas
performativas que estranham o estabelecido, que estranham padrões de
comportamento, cognição, relação. Como performer, entendo o estranho e a
estranheza como modos de conhecimento e de relação. Daí torna-se fundamental,
por exemplo, ir para a rua levando duas cadeiras da minha cozinha, colocar uma
diante da outra, descalçar os sapatos, erguer um cartaz onde está escrito "converso sobre qualquer assunto", esperar, e conversar com quem quiser se
aventurar comigo nessa prática de intimidade pública.
Outro desejo que alicerça o trabalho é o de me
encontrar com estranhos – aquele lá, o outro, aqueloutro completamente
desconhecido a quem as ações performativas que realizo abrem acesso e atraem.
Eu, estranha aos outros; os outros, estranhos a mim; todos estranhos a si mesmos,
pois praticando uma ação inusitada, esquisita, intrigante – ações simples, que
todos somos capazes de realizar, porém completamente fora do nosso cotidiano
comportamental, relacional, sensível.
E a dinâmica do público que assiste às performances,
causa estranhamento em você? Qual é o tipo de poesia que o artista recebe de
volta?
Não costumo realizar na rua performances a serem
assistidas por um público. As palavras "assistir" e "público" não se encaixam
bem aqui. As ações são dissonantes o bastante para causar estranhamento e
atrair um bocado de atenção, porém, não são espetaculares o suficiente para que
um público propriamente dito se forme para assistir a uma apresentação. Chego
muitas vezes nos locais escolhidos sem anunciar previamente e realizo uma ação
de longa duração – horas e horas, manhã e tarde, dia todo, para que haja
mudança de luz e tempo para a criação de corpos, de relações. Isso quando não
há deslocamento constante, o que obriga aqueles que querem acompanhar a prática
a se deslocarem comigo, compondo assim a matéria e o movimento do trabalho
também.
Para dar palavras, digamos o seguinte: um pessoal se
junta. Passantes são atraídos, desviam de seus caminhos anteriores e se agrupam
com curiosidade em torno de uma prática, como dizer, uma prática incomum, rara,
singular. Numa ação chamada Jarros, por exemplo, o programa é assim: dois
jarros – um de barro, outro de prata; um cheio d'água, outro vazio. Meu
objetivo é mover a água de um para o outro até seu desaparecimento completo.
Caso passantes se aproximem, ofereço os jarros para que realizem a ação também.
Ou, ofereço um dos jarros para que a realizemos juntos. Pois então, chego ao
local, descalço os sapatos e começo a passar esse fio líquido brilhante, essa
linha de cristal para lá e para cá, para cá e para lá. Isso irá durar entre 4 e
5 horas. Daí um se aproxima, depois outro, mais outro, o primeiro vai embora,
depois volta com um amigo. Conversamos em grupo ou individualmente.
São sucessões de perguntas, respostas, não-respostas,
quase-perguntas e histórias de todo tipo que começam a ser contadas e trocadas,
e escutadas, e lembradas. E também conversa fiada, papo furado, piada, deboche,
implicância, rejeição, paquera, toca o telefone e a pessoa atende. Às vezes,
silêncios, vazios, profundos. Umas vinte pessoas se vão, fico só, outras dez se
aproximam, se vão, umas ficam de longe e mais pessoas se juntam. Eventualmente
alguém me ajuda com um dos jarros, e lá pelas tantas, duas outras pessoas estão
realizando a ação enquanto eu "assisto". O campo poético se expande, o fluxo
dialógico acelera e relações se articulam em torno de um fio d'água.
Você tem algum ritual específico para desenvolver suas
performances?
Todos e nenhum. Sou o tipo de pessoa para quem ir à
padaria é um grande evento. Deixa ver como posso te dizer... "Espiritualidade"
é uma palavra importante a se acrescentar aqui, mas no tom certo. Assim como
entendo, espiritualidade é prática cotidiana, é algo muito concreto que se
desenvolve no cuidado consigo e com todos. No cuidado com aquilo que se faz e
na relação com o que os outros fazem. Entendo a performance como uma prática
espiritual radicalmente corpórea, estética, politizada e politizante. Ou como
uma prática estética radicalmente espiritual, corporal e política. Ou como uma
prática corporal radicalmente estética e espiritualmente política. E por aí
vai.
Então, se você me pergunta como me preparo para performar, para ir à rua
performar, se há um ritual específico, te digo: me preparo vivendo a vida de
modo a retribuir vida à vida. É a vida vivida e vivenciada até aquele
determinado momento que possibilita a concepção de cada programa e sua
ativação. E, de fato, como em todo ritual, haverá sempre um processo de
evocação, encarnação e liberação – um desejo de cidade, uma prática de cidade e
uma liberação da cidade. Um desejo de poética, uma prática poética e a
fecundação de uma nova necessidade poética. Uma vontade de corpo, uma invenção
de corpo e uma liberação para que surjam outros corpos. A performance é um modo de viver
a vida. A performance é um meu modo de viver a vida, uma saúde.
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